O INCUMPRIMENTO DO DEVEDOR COMO FUNDAMENTO DA INSOLVÊNCIA
Por Luís M. Martins, Advogado*. Sobre a diferença entre insolvência e o processo executivo já nos debruçámos no artigo “ACÇÃO EXECUTIVA OU REQUERER A INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR?”. Neste artigo, vamos apenas considerar o processo de insolvência em si mesmo, enquanto processo de execução universal e do pressuposto para sua decretação, derivado do incumprimento do devedor. A opção entre a acção executiva e a insolvência é influenciada por variáveis diferenciadas como a natureza e o montante do crédito, a dimensão e a situação da empresa, o tipo de actividade, etc.
Esta decisão nem sempre é fácil de tomar mas, se não é possível definir um caminho único, é pelo menos possível definir a forma e os meios de o percorrer. Afigurando-se como uma jornada de vários passos, deve ser percorrida de forma segura, coerente e estratégica. Pois, muitas vezes, avançar sem compreender a dinâmica do processo significa estar a utilizar um meio processual que, no fim, não permite alcançar os objectivos pretendidos – a almejada cobrança de créditos.
Desde logo, e como se refere nos pontos 3 e 6 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, importa ter presente que a insolvência assume uma função de execução e satisfação dos direitos dos credores e uma função de cariz social e equilíbrio económico-financeiro: “O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores (….) A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais”, cabendo ao credor recorrer a este meio processual sempre que entender ser o adequado para, ponderadas as circunstâncias, atingir a protecção/garantia do seu direito de crédito.Todavia, não deixa de ser fundamental uma minuciosa avaliação e ponderação da problemática, tanto no momento de requerer a insolvência pelo credor, como na apresentação à insolvência pelo devedor uma vez que, frequentemente se verifica que o importante já não é a empresa insolvente em si. Esta há muito que está morta – só falta fazer o funeral.
Esta situação verifica-se principalmente para o devedor (administradores/gerentes) nos casos de apresentação à insolvência quando o intuito é liquidar e dissolver a empresa. Estes acabam por ver o tribunal, através do processo de insolvência, como o balcão das urgências para a empresa há muito falida e num estado de sofrimento atroz. Sofrimento que tentam minorar com o pedido de declaração de insolvência no tribunal - como se de uma urgência hospitalar se tratasse.
Nas urgências, o médico (juiz) de serviço declara o seu estado criíico, podendo declarar, de imediato, o óbito caso constate que esta está morta (insolvência com caracter limitado - art.º 39). Nestes casos, nem chega à UCI (Unidade de Cuidados Intensivos), segue logo das urgências para a morgue. Isto se os credores não requerem a sua exumação (complemento de sentença).
Se o não fizer, a assembleia de credores constatará que a empresa não respira e declara o óbito, encarregando o administrador de Insolvência de providenciar o “enterro”. Sendo que trata-se deenterrar o que já alguém se encarregou de matar e que se há enterro este será para benefício da generalidade dos credores.
Casos existem, em que estes decidem tratamentos alternativos ou submeter o doente a uma cirugia, podendo nomear um enfermeiro – administrador de insolvência, para aferir se o paciente toma os medicamentos e consegue recuperar (ex. fiscalização do plano prevista no art.º 220º). Casos frequentes na medicina mas, infelizmente, cada vez mais raros na insolvência.
Neste episódio de “urgências”, que culmina com a tentativa de alcançar a almejada declaração de óbito, esqueceu-se o devedor que existe um período de luto e aqueles que o vão chorar – os credores. Estes, com alguma frequência, tal como acontece na vida real, só se lembram da pessoa porque tiveram conhecimento que esta morreu (embora soubessem que estava factualmente “morta”…mas, de morto matado ou morrido, de morrer a ser enterrado vai um grande passo) e, no enterro, quando se juntam, recordam os negócios feitos e os créditos perdidos, vindo-lhes à memória a resolução em benefício da massa insolvente, o incidente de qualificação, entre outros meios processuais “alegadamente inesperados” mas mais “pesados” e passíveis de serem aplicados para efectivar determinados níveis de responsabilidade, trazendo assim grandes dissabores não ao paciente – a empresa -, mas aos seus acompanhantes (administradores/gerentes). Podendo concluir-se que estes entram mas não sabem onde se metem….
Voltando ao tema, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente - artigo 1º.
Estabelece o art.º 3º que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos factos elencados no artigo 20º nº 1 destacando-se aqui o “incumprimento das obrigações do devedor como fundamento do pedido de insolvência”.
A jurisprudência e doutrina têm considerado que os factos elencados no art. 20 nº 1 constituem meros índices da situação de insolvência, tal como definida no art.º 3º sendo que, a verificação de qualquer um desses factos-índice permite presumir a situação de insolvência do devedor (esta será também a causa de pedir). Presunção que pode e deve ser ilidida pelo devedor na oposição ao pedido de insolvência.
Ou seja, invocando e provando o credor estarem preenchidos algum ou alguns dos factos enumerados no n.º 1 do art.º 20º, bem como o incumprimento da generalidade das obrigações do devedor e impossibilidade de este pagar, revela-se condição para que seja declarada a insolvência (se o devedor não vier ao processo argumentar que tal situação não se verifica).
Mas atenção, não basta que o devedor deixe de cumprir este ou aquele contrato (em especial o do credor requerente da insolvência), para que esteja preenchida e possa ser declarada a insolvência. É essencial o incumprimento generalizado das demais obrigações existentes (ou pelo menos algumas) ou trazer elementos ao processo que permitam concluir que o devedor não conseguirá continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos (seja o actual incumprimento pontual ou generalizado).
Pois, as als. a) e b) do n.º 1 do art.º 20º mencionam que o credor pode requerer a insolvência do devedor verificado o incumprimento da “generalidade das obrigações”, afastando-se assim o legislador do incumprimento pontual, (podemos estar perante dificuldades ocasionais por défice momentâneo de tesouraria que não expressam uma situação de penúria da empresa ou qualquer outra situação).
Fronteira entre o querer/poder/dever/aproveitar muitas vezes incompreendida e (in)tolerada, que dá origem à utilização do processo de insolvência como arma terrorista em detrimento dos meios processuais próprios e que num estado de crise generalizado do “salve-se quem puder” proporciona que os fins se sobreponham aos meios tanto para devedores como credores.
Se quanto ao devedor se resume ao episódio de “urgências” em que nem sempre o filme termina com um "happy ending" os credores também têm uma película retratada num verdadeiro campo de batalha de sobrevivência diário – pois sobreviver a uma crise de falta de liquidez e créditos incobráveis é asfixiante, verificável pelo aumento do número de insolvências.
No nº 146 [Abril 2008] da revista Courrier Internacional pode ler-se um artigo da autoria de Yediot Aharonot, de Telavive, intitulado “Como aterrorizar Gaza sem matar”, mencionando a utilização de “Gases lacrimogéneos e música ensurdecedora…”.
O processo de insolvência enquanto processo de partes é, por vezes, utilizado pelos credores com o mesmo fim…como arma de terror, sem ter intenção de matar. Um heavy metal diabólico tocado a 300 decibéis que leva o devedor a pagar antes que a música seja outra - intitulada “insolvência declarada”.
Com último reduto, vale aos nossos julgadores senso jurídico na análise dos patologias alegados por ambos (análise das provas sobre o direito invocado pelas partes).
Todos os preceitos legais citados sem indicação da fonte são do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE.
Neste artigo aborda-se um tema geral sobre o direito da insolvência, com o distanciamento do caso concreto, prestando-se um serviço social e de divulgação de informação jurídica (cfr. artigo 20.º, n.º 2, da Constituição).
*Autor do Artigo: Luís M. Martins
Profissão: Advogado
Perfil: Exerce a sua atividade com especial incidência na área do direito da insolvência, reestruturação e recuperação de empresas e pessoas singulares. É membro da Insol Europe (Association of Europe Insolvency lawyers an accountants specialising in corporate recovery and bankruptcy).
Nota curricular: Autor de inúmeras intervenções, artigos sobre insolvência e recuperação de empresas e pessoas singulares. Autor dos seguintes livros: “RECUPERAÇÃO DE PESSOAS SINGULARES” (Editora Almedina, 2011), “PROCESSO DE INSOLVÊNCIA ANOTADO E COMENTADO” (Editora Almedina, 2ª Edição), “CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS” (Editora Almedina, 2010), “INCUMPRIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO” (Editora Verlag dashofer, 2007, 3ª edição), “REGIME JURÍDICO DOS FUNDOS DO INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – ANOTADO E COMENTADO” (Editora Vida Imobiliária, 2006), “MANUAL PRÁTICO DE DIREITO DO TRABALHO” (Editora Verlag Dashofer, 2006), MANUAL PRÁTICO PARA A GESTÃO DAS ACTIVIDADES IMOBILIÁRIAS” (Editora Verlag Dashofer, 2006), “CÓDIGO COOPERATIVO - ANOTADO" (Editora Vida Económica, 2005, 2ª edição), “CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS - ANOTADO” (Editora Vida Económica, 2004, 2ª edição). Saber mais sobre o autor