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O TRESPASSE DO ESTABELECIMENTO

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Por Luís M. Martins, Advogado*. A lei não fornece o conceito de trespasse. Todavia, a doutrina e a jurisprudência encontram suporte para a sua definição no art. 115.º n.º 2, al. a) do RAU, definindo-o como um acto de comércio objectivo no qual se transmite inter-vivos e de forma definitiva, a titularidade de um estabelecimento comercial (elementos corpóreos e incorpóreos 1) em termos que se destinam a satisfazer necessidades específicas da actividade das empresas e do comércio em geral, estando a sua validade sujeita a forma escrita, que deve ser documento particular 2). Definição perfilhada pelo Ac. do STJ, de 24 de Março de 2003, Proc. n.º 1164/02, ao resumir: “Enfim e de uma forma sintética poderemos definir o trespasse como a transmissão inter-vivos definitiva, unitária e onerosa do estabelecimento comercial, entendido este como a realidade jurídica complexa, heterogénea e dinâmica, constituída pelos bens corpóreos e incorpóreos que o integram (…)

No entanto, e por um lado, para se falar em trespasse não é necessário que a transferência abarque todos os elementos que, na altura, integram o estabelecimento.

É, assim, admissível o trespasse parcial, desde que os elementos transmitidos tenham autonomia funcional, ou seja, desde que a transmissão abranja aquele mínimo de elementos essencial à existência e ao funcionamento do estabelecimento - cfr. Ac. do STJ, de 28/3/2002, BMJ 495º-301.”Se o trespasse engloba a universalidade dos elementos que integram o estabelecimento, é importante ressalvar que alguns desses elementos podem ser excluídos do trespasse desde que, o alienante, o faça com a concordância da outra parte (marcas, nome, insígnias, etc.).O trespasse acaba por ter como objectivo a conservação da identidade e actividade do estabelecimento, obrigando o transmissário a explorar o estabelecimento na mesma actividade, excluindo-se esta figura caso o trespassário passe a explorar, no mesmo local, outro ramo de comércio ou indústria. (Cfr. art. 115.º n.º 2 al. b) do RAU 3.O trespasse do estabelecimento comercial não está sujeito a autorização do senhorio. Todavia, o arrendatário, nos termos da al. g) do art. 1038.º do Cod. Civ, tem a obrigação de lhe comunicar, no prazo de 15 dias, a sua realização, sob pena de aquele poder resolver o contrato nos termos do art. 64º, 1, f), do RAU.A comunicação deverá ser dirigida a qualquer um dos titulares do direito de preferência que possa exercê-la uma vez que, nos termos do art. 116º n.º 2 do RAU, são aplicáveis os artigos 416º a 418º e 1410º, que prevêm o conhecimento de qualquer um dos comproprietários. Neste sentido veja-se o Ac. da RP de 01/06/99 “No caso de trespasse, pertencendo o prédio arrendado a diversos comproprietários, é suficiente, para satisfazer à exigência da al. g) do artº 1038º do Código Civil, a comunicação feita apenas a um dos comproprietários”.

A comunicação para preferência não obedece a nenhuma formalidade especial, seguindo o princípio da liberdade de forma consagrada no art. 219º, Cod. Civ., sendo eficaz quando chega ao poder do destinatário, ou é do seu conhecimento (cfr. 1, do art. 224.º do Cod. Civ.) 4. A dispensa de autorização do senhorio surge da necessidade de salvaguardar a agilidade do comércio em geral, que impõe que a transferência da propriedade do estabelecimento comercial deva ser acompanhada pelo direito ao arrendamento dos locais arrendados onde funciona, mesmo sem a autorização do senhorio, sob pena de inviabilizar o valor económico intrínseco ao objecto do trespasse. Ao regime do trespasse oneroso aplica-se o disposto no art. 939.º do Cod. Civ., estando o vendedor obrigado a proporcionar ao comprador a posse e fruição da coisa vendida, dentro do princípio geral da boa fé e no cumprimento das obrigações previsto no art. 762.º n.º 2 do Cod. Civ..Embora o trespasse abranja a universalidade que integra o estabelecimento comercial, enquanto transferência unitária, não está incluída a transmissão automática do passivo e do activo da empresa.

Na transmissão da universalidade de facto do estabelecimento, não decorre a obrigação de pagar o passivo por quem adquirir o activo.Na assunção do passivo, o adquirente do estabelecimento apenas responde pelas dívidas inerentes ao estabelecimento, derivada da respectiva exploração e desde que anteriores ao trespasse, se tal for convencionado pelas partes. E, mesmo na possibilidade de acordo relativo ao pagamento do passivo da empresa, o alienante não fica automaticamente desobrigado, salvo se nisso consentirem os credores pois, a transmissão das dívidas, exige a sua concordância, nos termos previstos na lei civil (cfr. arts.º 595.º, 596.º e 858.º do Cod. Civ.) 5.Conclusões:- Existe trespasse sempre que ocorrer uma transferência inter-vivos, definitiva e unitária de um estabelecimento comercial ou industrial;- É permitido o trespasse (posição de arrendatário), sem dependência da autorização do senhorio;- O trespasse não implica a transmissão automática do activo e passivo do estabelecimento comercial, continuando o trespassário responsável pelo seu pagamento, excepto se for exonerado pelo credor.

1 - Como elementos corpóreos podemos salientar: o imóvel (se pertencer ao estabelecimento), mercadorias, máquinas, matéria-prima, produtos, mobília, dinheiro, etc..Como elementos incorpóreos podem ser considerados: direito ao uso exclusivo da insígnia, nome do estabelecimento, marcas, patentes de invenção, direitos de propriedade industrial e direitos resultantes de contratos.

2 - Com a alteração à redacção do art.º 115.º, n.º 3 introduzida pelo Dec.-Lei n.º 64-A/2000, de 22.04., o contrato de trespasse passou a ter que ser celebrado por documento particular, sob pena de nulidade, deixando de ser exigido escritura pública para o efeito.

3 - Pretende prosseguir com a mesma actividade de forma a não inviabilizar a prossecução da mesma, podendo o estabelecimento ser transferido para outro local.

4 - Quando o titular do estabelecimento for uma sociedade, a transmissão das quotas dos sócios e, consequentemente, a transmissão, de forma imediata, do respectivo estabelecimento, já não envolve tal direito de preferência.

5 - Quanto à responsabilidade por créditos salariais subsequentes à transmissão do estabelecimento, o transmitente é solidariamente responsável com o adquirente, pelas obrigações vencidas até à data da transmissão, durante o período de um ano subsequente à transmissão (Cfr. art. 319.º do CT).

Neste artigo aborda-se um tema geral sobre o direito da insolvência, com o distanciamento do caso concreto, prestando-se um serviço social e de divulgação de informação jurídica (cfr. artigo 20.º, n.º 2, da Constituição).

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LMAutor do Artigo: Luís M. Martins
Profissão: Advogado
Perfil: Exerce a sua atividade com especial incidência na área do direito da insolvência, reestruturação e recuperação de empresas e pessoas singulares. É membro da Insol Europe (Association of Europe Insolvency lawyers an accountants specialising in corporate recovery and bankruptcy).
Nota curricular: Autor de inúmeras intervenções e artigos sobre insolvência e recuperação de empresas e pessoas singulares. Autor dos seguintes livros: “RECUPERAÇÃO DE PESSOAS SINGULARES” (Editora Almedina, 2011), “PROCESSO DE INSOLVÊNCIA ANOTADO E COMENTADO” (Editora Almedina, 2ª Edição), “CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS” (Editora Almedina, 2010), “INCUMPRIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO” (Editora Verlag dashofer, 2007, 3ª edição), “REGIME JURÍDICO DOS FUNDOS DO INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – ANOTADO E COMENTADO” (Editora Vida Imobiliária, 2006), “MANUAL PRÁTICO DE DIREITO DO TRABALHO” (Editora Verlag Dashofer, 2006), MANUAL PRÁTICO PARA A GESTÃO DAS ACTIVIDADES IMOBILIÁRIAS” (Editora Verlag Dashofer, 2006), “CÓDIGO COOPERATIVO - ANOTADO" (Editora Vida Económica, 2005, 2ª edição), “CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS - ANOTADO” (Editora Vida Económica, 2004, 2ª edição). Saber mais sobre o autor