INDICAÇÃO DO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA COMO TESTEMUNHA
Por Luís M. Martins, Advogado.
Um dos aspectos do CIRE que tem merecido reflexão e discussão (e também causado alguma celeuma) é a obrigatoriedade do Administrador da Insolvência emitir um parecer sobre a qualificação da insolvência – Cfr. art.º 188º n.º 2 do CIRE. De facto, trata-se de uma inovação significativa em relação à anterior legislação, que nada previa em relação à actuação dos responsáveis das empresas devedoras.
Actualmente, o processo que conduz à insolvência, passou a ter que ser, sempre, objecto de apreciação, por parte do administrador da insolvência, mediante a apresentação, no tribunal, de um parecer fundamentado sobre a qualificação da insolvência: culposa ou fortuita.
Neste incidente de qualificação, e no âmbito das alegações alegações para efeitos da qualificação e nas contestações ao parecer do administrador de insolvência sobre a qualificação da insolvência como culposa (o qual identifica quem considera afectado pela qualificação) é cada vez mais usual a indicação do próprio administrador da insolvência como testemunha colocando-se a questão da (in) possibilidade, ou não, de este prestar depoimento.
O Administrador de Insolvência é um servidor da justiça e do direito (art.º 16.º, n.º 1 do Estatuto do Administrador de Insolvência – Lei n.º 32/2004, de 22/7). Logo, não pode ser considerado parte no processo de insolvência nem tal seria conciliável com a sua nomeação e destituição no processo pelo juiz (Art.ºs 36º, 52º e 56º do CIRE), nem com as funções que exerce....
Uma vez que, em bom rigor, está obrigado a actuar com a maior independência e isenção, não prosseguindo quaisquer objectivos diversos dos inerentes ao exercício da sua actividade (n.º 2 do art.º 16.º da Lei 32/2004) – deveres a que está adstrito – não é possível, porque inconciliável, tê-lo como parte no processo.
E, no exercício das suas funções, está sujeito ao regime de incompatibilidades, aplicáveis aos titulares de órgãos sociais das sociedades, e ainda ao regime de impedimentos e suspeiçõesaplicável aos juízes (art.º 8.º, n.º 1 citado diploma) matéria que é regulada pela lei do processo civil que garante a imparcialidade dos juízes pelo sistema dos impedimentos (art. 122º do CPC) e das suspeições (art. 127º do CPC).
O impedimento gera incapacidade absoluta para o exercício das funções e afecta sempre a imparcialidade e a independência do administrador de insolvência vedando a sua intervenção no processo, a suspeição pode ou não afectar a imparcialidade e independência do administrador, uma vez que tudo dependerá das razões e fundamentos que lhe servem de base e tem de ser declarada a pedido do juiz ou a requerimento das partes.
As causas de impedimento, que no caso interessam, vêm enumeradas taxativamente no referido art.º 122º que, sob a epígrafe “Casos de impedimento do juiz”, estabelece:
”1. Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária:
a) …
b) …
c) …
d) …
e) …
f) …
g)…
h) Quando haja deposto ou tenha de depor como testemunha;
i)….
2…..
3…..
Dispondo ainda o n.º 1 do artigo 620º do CPC, sobre a epígrafe, “Designação do juiz como testemunha” que “ O juiz da causa que seja indicado como testemunha deve declarar sob juramento no processo, logo que este lhe seja concluso ou lhe vá com vista, se tem conhecimento de factos que possam influir na decisão: no caso afirmativo, declarar-se-á impedido, não podendo a parte prescindir do seu depoimento; no caso negativo, a indicação fica sem efeito.”
Paralelamente, por aplicação remissiva para a lei processual civil, deve o administrador pautar a sua posição no processo nos mesmos moldes. Questionando-se apenas qual o momento para o administrador fazer essa declaração.
Ensina o Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. IV, , pág. 370, que o juiz só deve fazer a declaração em causa quando o rol ficar estabilizado, ou seja, depois do momento próprio para a sua apresentação previsto no art.º 512.º. Como hoje é possível, em momento ulterior, alterar ou aditar tal rol, nos termos do art.º 512.º-A, e que o juiz ( do tribunal singular) ou o juiz presidente ou qualquer dos adjuntos (do tribunal colectivo) passe(m) a constar desse rol, será este/esse/neste o/no momento em que essa declaração tem/terá de ser feita.
No caso concreto, o administrador é indicado como testemunha na oposição ao incidente de qualificação ou nas alegações para esse efeito, nos termos do art.º 188.º .
Ao ter conhecimento da sua indicação como testemunha, deve declarar de imediato nos autos, sob juramento e por referência aos citados artigos, se tem ou não conhecimento de factos que possam influir na decisão.
Todavia, e como é natural, pode e deve prestar esclarecimentos sobre alguns aspectos do seu parecer que o exijam ou justifiquem – o que diverge da posição processual de testemunha com todos os seus direitos, deveres e obrigações.
Cabe ao juiz, se não o fizer logo em resposta ao requerimento do Administrador, apreciar a questão ao proferir despacho - nos termos previstos nos artigos 510º e 511º do CPC, por remissão do art.º 188º n.º 7 para os artigos 132º a 139º do CIRE pois é neste momento que o incidente se estabiliza.
Ou seja, se declarar que tem conhecimento de factos que possam influir na decisão, deve declarar-se impedido, não podendo a parte prescindir do seu depoimento. Será nomeado novo administrador no processo de insolvência, pois o administrador – nos termos do disposto na al. h) do art. 122º do CPC conjugado com o art. 620º do mesmo diploma legal - não pode exercer funções quando haja ou tenha de depor como testemunha.
Caso este declare que não tem conhecimentos dos factos, a indicação fica sem efeito não devendo ser considerado no requerimento probatório (tendo sempre que existir despacho do juiz nesse sentido).
Não fosse dado ao administrador esta faculdade de declarar, sob juramento, se conhece ou não os factos alegados no incidente de qualificação, aferindo do seu impedimento, podiam gerar-se manobras fraudulentas de o administrador ser indicado como testemunha apenas com o propósito de o afastar do processo, sabendo, de antemão, que ele não tinha conhecimento de qualquer facto relevante para a decisão da causa.
Neste artigo aborda-se um tema geral sobre o direito da insolvência, com o distanciamento do caso concreto, prestando-se um serviço social e de divulgação de informação jurídica (cfr. artigo 20.º, n.º 2, da Constituição).
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Autor do Artigo: Luís M. Martins
Profissão: Advogado
Perfil: Exerce a sua atividade com especial incidência na área do direito da insolvência, reestruturação e recuperação de empresas e pessoas singulares. É membro da Insol Europe (Association of Europe Insolvency lawyers an accountants specialising in corporate recovery and bankruptcy).
Nota curricular: Autor de inúmeras intervenções e artigos sobre insolvência e recuperação de empresas e pessoas singulares. Autor dos seguintes livros: “RECUPERAÇÃO DE PESSOAS SINGULARES” (Editora Almedina, 2011), “PROCESSO DE INSOLVÊNCIA ANOTADO E COMENTADO” (Editora Almedina, 2ª Edição), “CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS” (Editora Almedina, 2010), “INCUMPRIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO” (Editora Verlag dashofer, 2007, 3ª edição), “REGIME JURÍDICO DOS FUNDOS DO INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO – ANOTADO E COMENTADO” (Editora Vida Imobiliária, 2006), “MANUAL PRÁTICO DE DIREITO DO TRABALHO” (Editora Verlag Dashofer, 2006), MANUAL PRÁTICO PARA A GESTÃO DAS ACTIVIDADES IMOBILIÁRIAS” (Editora Verlag Dashofer, 2006), “CÓDIGO COOPERATIVO - ANOTADO" (Editora Vida Económica, 2005, 2ª edição), “CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS - ANOTADO” (Editora Vida Económica, 2004, 2ª edição). Saber mais sobre o autor